domingo, 21 de fevereiro de 2010

Uma cidade com esta vida cultural não tem tempo para se sentar

CULTURA feirense em grande destaque e retrospectiva no PÚBLICO.

Saramago fez 80 anos aqui, Spencer Tunick fotografou nus com vista para o castelo, Oliviero Toscani preferiu os burros de Miranda e Joana Vasconcelos uma colcha de croché. Os La Fura dels Baus fizeram várias coisas. Por estas e por outras, a Feira passou a ser um exemplo a seguir. O Festival para Gente Sentada começa na sexta-feira.

Programação regular, dinâmica permanente e envolvimento da comunidade. Podem existir outras, mas são estas as três razões que melhor ajudam a perceber por que é que Santa Maria da Feira passou a ser um exemplo a seguir. Joana Vasconcelos, a artista plástica, sabe do que fala: "A Feira é, absolutamente, uma referência cultural, até pela organização do festival de teatro de rua e pela intervenção das pessoas nas actividades culturais".

A artista concebeu para a edição de 2007 do Imaginarius - Festival Internacional de Teatro de Rua - uma colcha de croché de oito metros de comprimento, elaborada por mais de 500 mulheres de associações, centros de dia e de vários grupos informais. Esta peça, a Donzela, foi exposta na torre de menagem do castelo da Feira e na Bienal de Veneza.

Um ano depois, Joana Vasconcelos regressou para fazer uma colcha ainda maior. Mais de 1500 mulheres disponibilizaram-se para o croché e assim nasceu a Varina, que esteve colocada na Ponte de D. Luís. "É muito interessante a forma como as pessoas se envolvem e isso demonstra que não é gente parada; é dinâmica e participa na vida cultural da cidade", diz a artista. Para Joana Vasconcelos, a Feira "é um exemplo que deve ser seguido". "Se todas as cidades fossem como Santa Maria da Feira, os artistas, das mais diversas áreas, estariam muito mais organizados e teriam mais coisas para fazer", acrescenta.

A coreógrafa Clara Andermatt está a remontar o seu espectáculo Dan Dau, de 1999, para apresentar no próximo Imaginarius, de 27 a 29 de Maio. O primeiro contacto teve lugar em 2008, quando criou Meu Céu (com um grupo de idosos da Feira e bailarinos profissionais). Este ano, já coordenou um workshop de dança com a comunidade de ciganos da Baralha, na freguesia de Sanguedo, um projecto coordenado pelo realizador Marco Martins e que pretende recriar Romeu e Julieta num espectáculo que será apresentado no próximo Imaginarius. A actriz Beatriz Batarda e o realizador João Salavisa também estão envolvidos nesta produção.

Clara Andermatt ficou admirada com o que viu. "Fiquei surpreendida não só em relação ao festival, que não conhecia, mas com uma dinâmica incrível... e comecei a aperceber-me do importante trabalho feito com a comunidade". "Há uma dinâmica de concertos mês a mês, de participação da comunidade e a população é muito activa e receptiva em relação ao festival", sublinha. A coreógrafa sente-se quase em casa. "A Feira ganha uma luminosidade incrível quando acontecem os eventos. É impressionante como, de repente, a cidade fica superlotada. E sente-se que a comunidade tem muito orgulho na cidade".

A casa de Caric e...

O Ballet Contemporâneo do Norte está há dois anos e meio em residência artística na Feira. Fez as malas de Estarreja por falta de apoios do Ministério da Cultura e encontrou um local para trabalhar: o cineteatro da cidade. A escolha não foi feita ao acaso. "Já sabíamos do movimento cultural que a Feira projectava", adianta Elisa Worm, coreógrafa da companhia. Desde então, o grupo criou três espectáculos e o último contou com a participação de 14 voluntários de um programa de crianças e jovens em risco, desenvolvido pela câmara. E desde o ano passado que, em colaboração com o pelouro da Educação, os bailarinos vão às escolas com uma peça criada para os mais pequenos.

"Santa Maria da Feira tem dois ou três eventos muito interessantes e tem outros momentos que fazem com que as pessoas circulem". Elisa Worm fala em generosidade. "A Feira é carinhosa quando expõe e dispõe de uma linguagem cultural num sentido generoso". Mesmo assim, a coreógrafa não concorda com espectáculos gratuitos. "As coisas pagam-se, muito ou pouco. Deve haver troca por troca, para subsistência dos artistas."

A participação da comunidade é dos factores que ajudam a explicar a projecção cultural. É o caso da Instável Orquestra. Tudo começou com um convite feito ao sérvio Aleksandar Caric para criar um projecto musical para o Imaginarius de 2008. Caric juntou cerca de 100 pessoas de todas as idades. Construíram instrumentos com materiais recicláveis e prepararam músicas para o desfile do Principezinho. No ano passado, envolveram-se na parada que acompanhava o pinóquio gigante que passeava pelo Imaginarius. Neste momento, Caric trabalha com crianças das escolas primárias, moradores de um empreendimento de habitação social e elementos da Associação de Alcoólicos Anónimos Recuperados da Feira, divididos em cinco grupos.

Para o Imaginarius deste ano, está a ultimar uma história criada por cerca de 150 pessoas, que será lida em voz alta por três contadores de histórias, um português, um cabo-verdiano e um brasileiro. A Instável Orquestra vai acompanhar o momento. Esta orquestra é um grupo imprevisível, que não precisa de conhecer as notas musicais. Quanto mais improvisação melhor. "É um processo criativo. Trabalhamos com as pessoas, que inventam as músicas. Acreditamos que cada um pode contribuir no processo de criar melodias, que cada pessoa tem o seu lado musical", diz Caric, que continua a ler a história do bombeiro Francisco Silveira que se enamora de Afonsina antes de reencontrar um amor da adolescência. Pega no bandolim e, por momentos, usa o instrumento para acompanhar excertos da aventura. "A história não está acabada e quase podia ser um romance." O grupo ri-se.

A Feira é a segunda casa de Caric, que se surpreendeu com a sua intensa actividade cultural. "Viajo por vários países e costumo falar muitas vezes dos projectos culturais da Feira como exemplos a seguir". A Instável Orquestra é um dos frutos do Imaginarius que criaram raízes, tendo já marcado presença num festival de música de rua na Sérvia. "É um grupo em que cada um contribui com as suas experiências, em que há um intercâmbio geracional muito forte", observa.

... a música de Devendra

A lista é extensa. O escritor José Saramago comemorou os 80 anos em Santa Maria da Feira com as actrizes Marisa Paredes, Maria de Medeiros e Laura Morante a recitarem excertos das suas obras. O fotógrafo norte-americano Spencer Tunick fotografou corpos nus com o castelo em pano de fundo. O autor da controversa publicidade da Benetton, Oliviero Toscani, montou uma exposição de burros que fotografou em Miranda do Douro.

A companhia catalã La Fura dels Baus recrutou gente, fez um workshop para apresentar uma produção criada à medida do Imaginarius. Roberto Saviano, escritor e jornalista italiano, autor de Gomorra e ameaçado de morte pela máfia napolitana, foi lá admitir que não é um herói. Paul Rusesabagina, que evitou inúmeras mortes no genocídio de Ruanda, falou dessa experiência na Feira.

Não é tudo. A Feira tem o único festival internacional de teatro de rua do país, onde têm estado algumas das mais importantes companhias europeias, uma Viagem Medieval que quer tornar-se uma referência europeia em termos de recriação histórica dos tempos medievais. Sem entradas pagas. Tem também o único festival luso-brasileiro de cinema que já trouxe a este lado do Atlântico Ney Matogrosso e Walter Salles.

Há mais: a cidade dedica dois dias por ano a concertos de cantautores. O Festival Para Gente Sentada começa sexta-feira no Cineteatro António Lamoso com o norte-americano Bill Callahan, o irlandês Perry Blake e a dupla norte-americana Matt Valentine & Erika Elder. No sábado, entram em palco os escoceses Camera Obscura, os britânicos Dakota Suite e ainda David Santos com o seu projecto Noiserv.

Na primeira edição deste festival, em 2004, Devendra Banhart foi cabeça de cartaz, estreia absoluta em Portugal. Algum tempo depois, o músico decidiu homenagear a Feira, baptizando uma canção com o nome da cidade no seu álbum Cripple Crow.

A visão da área cultural começou a mudar quando Carlos Martins assumiu o pelouro em 1997. Tinha 29 anos, uma equipa jovem, vontade de afirmar o território pela positiva, cumplicidade política e orçamento disponível para concretizar projectos. "Não há truques na manga", garante Carlos Martins, agora ligado ao projecto Guimarães Capital da Cultura. "A cultura não é uma gaveta, mas expressão de tudo o que é território e comunidade e quando se sai fora da caixa percebe-se que há novas oportunidades."

A sua estratégia foi um desafio. "A capacidade de risco é muito importante: a capacidade de arriscar em coisas que não se poderá gostar à primeira, arriscar estética e programaticamente". Carlos Martins insiste que não houve segredos, mas sim três factores que se conjugaram: visão, planeamento estratégico e meios necessários. "O presidente da câmara também entendeu que era uma área em que valia a pena investir, no sentido de que a cidade fosse mais competitiva e relevante no território nacional", sublinha. Um percurso em que constantemente é preciso "ler muito bem o território e o que faz sentido". "O que nos preocupava era a afirmação da nossa terra", conclui.

Cristina Tenreiro, a nova vereadora da Cultura, garante que o objectivo é manter a excelência cultural. "Santa Maria da Feira tem tido uma postura extremamente inteligente: no início, observa e vai buscar alguém de fora para saber como se faz. Depois, procura envolver a comunidade para marcar a diferença; a comunidade também participa nas iniciativas." A ideia é criar o bichinho, apelar ao sentimento de pertença. A estratégia não é copiar, mas sim aprender com quem sabe para depois reinventar. "Há muito do ADN dos feirenses na Viagem Medieval", exemplifica.

A responsável assegura que não há segredos. "Há um conjunto de factores que levaram a que a Feira se afirmasse pela sua dinâmica cultural. A Viagem Medieval, por exemplo, procurou ser diferente das outras feiras, todos os anos a história é diferente e em cada dia há um episódio para contar. Inovou, foi diferenciadora e tem um envolvimento da comunidade." Cristina Tenreiro revela que há contaminações no bom sentido. "Há jovens feirenses espalhados pela Europa a trabalhar nas artes circenses, na música, muito por influência desta actividade cultural. Foram "contaminados" por este contacto prematuro com as artes. Não é qualquer jovem", finaliza, "que tem acesso a esta dinâmica em muitas zonas deste país".

1 comentário:

Helena Teixeira disse...

Olá!
Sempre ouvi falar muito bem da famosa feira medieval de Sta.Maria da Feira e do Imaginarius.Dois grandes eventos dessa região.Agora o Festival para Gente Sentada é a primeira vez que ouço falar disso ou leio sobre :p
Engraçado!

Aproveito e deixo um convite: participe na Blogagem de Março do blogue www.aldeiadaminhavida.blogspot.com. O tema é: “Onde cresceu o meu Pai”. Basta enviar um texto máximo 25 linhas e 1 foto para aminhaldeia@sapo.pt (+ título e link do respectivo blog) até dia 8 de Março. Participe. Haverá boa convivência e possíveis prémios (veja mais no dia 28/02 no blog da Aldeia)!

Abraço
Lena