quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Viagem Medieval 2011 - Notas Finais

Passadas que estão 48 horas do encerramento da XV edição da Viagem Medieval em Terra de Santa Maria, já com ideias devidamente assentes, é tempo de ponderar os pontos mais importantes desta edição da maior recriação medieval da Europa. Pela positiva e pela negativa. As curiosidades. A análise dos principais projectos. Enfim, um resumo alargado de uma edição de luxo da Viagem Medieval.

Em 15 anos a Viagem transformou-se por compelto. Da Praça D’Armas do Castelo, em 1996, para um recinto de 33 hectares, em 2011, a distância foi apenas o somatório de muito trabalho, dedicação, inovação, coerência e sentido de conquista. O projecto assumiu patamares de consistência, qualidade e coerência raras vezes vistos neste tipo de conceitos culturais, de tal forma que os principais grupos de animação estrangeiros são unânimes em lhe atribuir o título de “maior e mais popular da Europa”.

Como não poderia deixar de ser, teremos de começar pelo início, pela maior dúvida… aquele que seria o maior problema. Problema!? Dizia-se que, em última análise, a existência de pagamento à entrada seria o fim do evento. Pois, eu nunca acreditei nessa teoria… e até afirmo que 2€ é muito pouco para pagar a qualidade do evento. A questão do bilhete deixou de o ser… é hoje ponto assente que a Viagem Medieval tem de criar receita para que possa sobreviver num contexto de crise e num mercado onde as iniciativas do género se multiplicam e apenas as mais fortes e coesas sobreviverão. Em muito se falou no valor simbólico, e assim foi… em média, 20 cêntimos por cada dia. Na próxima edição o sistema será ligeiramente diferente. A pulseira continuará a existir como passe para os 10 dias, sendo lançada a modalidade de bilhete diário. Os valores estão ainda por definir.

Deixando os pórticos, cuja cenografia lhes conferiu um ambiente absolutamente notável, entramos num recinto com melhorias logísticas significativas. Logo à primeira vista a questão do lixo. Se em edições anteriores a recolha de resíduos havia sido uma das críticas mais vezes apontadas à organização, este ano a solução foi posta em prática, podendo observar-se um espaço mais limpo. Notas muito positivas para: (i) a aposta, agora forte, na cenografia, da qual o Rossio está no topo da lista, com um ambiente em torno dos restaurantes digno de qualquer filme de Hollywood; (ii) a reformulação do espaço junto ao Rio Cáster, criando uma maior abertura do parque ao evento e um espaço de espectáculos de maior dimensão e conforto; e (iii) a estrutura cénica do Dragão que diariamente se mostrou nas ruas da cidade.

Quanto a pontos negativos, continuam a existir, e certamente terão melhor atenção no futuro. Se por um lado as mudanças na zona do rio causaram um melhor ambiente e mais espaço, por outro originaram uma maior sensação de espaço e com isso, um vazio. Talvez à custa de um projecto menos conseguido (Fortim Templário/Acampamento Mouro), o parque da cidade mostrou-se menos vivo e enérgico, acabando por “morrer”, em benefício da Alameda do Castelo.
Ainda, na questão do ambiente, sentiu-se pouca animação na envolvente do Convento e do Castelo, talvez em benefícios de outros espectáculos nesses locais. De referir, ainda, que o acesso sul ao mercado municipal, desde sempre um pouco mal tratado, conseguiu este ano descer ainda mais de nível.
Nota muito negativa para o projecto da Praça da Vila, que pelo segundo ano consecutivo não me conseguiu agarrar. Aliás, nesta edição penso que o projecto baixou ainda mais de nível. A Praça da República, nestes moldes, em nada se assemelhava a um local de recriação histórica. E a outras palavras poderia recorrer, mas não vale a pena ferir susceptibilidades.
Em termos logísticos, há que referir a suspensão do sistema de bilheteira online, que embora pouco utilizado, acabava por conferir uma maior facilidade na compra de bilhetes para os espectáculos e mesmo na descentralização dos locais de venda.

Entretanto esbarramos nas principais críticas do público: problemas no acesso e estacionamento. Pois, mais aí temos um problema de limitação de espaço, no qual o próprio recinto se inclui. A questão do trânsito poderá ser facilitada com, ainda, maior atenção nas alterações de sentido de artérias no período do evento, para que não se repitam situações, como por exemplo a que se verificou na envolvente à esquadra da PSP. No que ao estacionamento diz respeito, e mesmo sabendo que estamos a falar de Portugal, seria capaz de sugerir o reforço da rede especial de transportes públicos nos locais já servidos e a sua extensão a outras zonas geográficas. Aqui poderá residir uma das hipóteses de solução para os problemas de acesso ao recinto.

Deixando sugestões para o futuro, poderemos falar em cenografia, rigor, qualidade, inovação… mais cenografia, mais inovação… muito espectáculo, efeitos especiais e mais inovação… e por fim, um pouco mais de cenografia e ambientação. A resposta será, como sempre, orçamento… e aqui reside o busílis da questão: bilhete de entrada, assim terá de ser. Sem um orçamento à medida a Viagem correria o risco de ser “mais do mesmo”, perder a garra e com isso o público… e afinal de que serve um evento que não surpreende o público?

De seguida, apresenta-se a análise de alguns dos projectos desta edição caso a caso, de forma muito resumida.

Espectáculo de Abertura
A abertura da Viagem 2011 não trouxe nada de novo, perdão, mostrou-se o tão badalado dragão pela primeira vez. No dia gratuito, alguns momentos bem interessantes, que passaram despercebidos do público. A XV edição em nada fez lembrar a mega produção de abertura de 2009, ou mesmo o simples mais emotivo projecto do ano passado.

Sombras do Castelo
Confesso, eu adoro a história, a temática e o conceito, mas esta segunda edição, revista, das Sombras do Castelo soube a pouco. Um toque de desilusão fica bem presente. Um bocadinho do mais do mesmo… uma Praça D’Armas subaproveitada e alguns outros pontos passíveis de melhora. Acredito MUITO neste projecto, que afinal até recolheu opiniões muito positivas, mas a subida de uns quantos degraus só lhe fará bem. E volto a dizer que apesar das críticas que faço, ADORO o conceito e o projecto e espero que haja continuidade.

Torneio
O que é português é bom. Menos jogos a cavalo e mais justa apeada, com uma Liça ajustada ao conceito e a meu ver bem mais cenográfica. O público mais próximo da acção e de resto a receita é a mesma, uma hora de muita animação! Esta parceria Espada Lusitana e Cavaleiros do Tempo tem tudo para dar certo.

Honra e Glória
O grande espectáculo desta edição da Viagem Medieval. Um gigantesco projecto com uma qualidade absolutamente impar, mas ao final de 3 projectos do género (Assalto ao Arraial, O Fossado, Honra e Glória), fica um bocadinho a sensação do mais do mesmo. Será possível inovar na próxima edição?
A excelência e a qualidade do projecto são indiscutíveis, mas com o tempo o visitante habitual quer sempre mais… e, desta forma, este projecto não conseguiu atingir as expectativas mais elevadas. Talvez o excesso de espectáculos para uma só equipa (Juízo de Deus, Torneio e Honra e Glória) não tenha sido amigo da perfeição.

Afonso, Amor ou Reino
Quem diria que de forma surpreendente (ou não) a Viagem Medieval e a Meia Ponta iriam apresentar um projecto de tamanha qualidade. O Claustro do Convento dos Lóios serviu de palco ao dilema de D. Afonso, a sua amada ou a concretização do Reino de Portucale. Um espectáculo absolutamente intimista, que faz qualquer um sair do espaço com a mente mais leve. Oxalá a linha criativa seja para continuar.

Bosque dos Saltimbancos
O Bosque ou Floresta, dependendo dos anos, é já um espaço obrigatório na Viagem Medieval. A cada ano um novo conceito, na mesma linha de espectáculo. Este ano sem as tão famosas piadas para adultos no meio de um projecto infantil, mas mesmo assim a reforçar a importância de um conceito que há quase uma década foi pioneiro nesta abordagem teatral. Nesta edição, o projecto Anagrama assumiu, pela primeira vez, o espaço com um resultado bastante interessante.

Abrenuntio
Sem dúvida, o melhor espectáculo de encerramento de todas as edições da Viagem Medieval. As viagens míticas a que os Saltarellus já nos habituaram atingem patamares de qualidade e de diferenciação absolutamente notáveis. Mantém-se a minha “crítica” de anos, o uso abusivo do espectáculo ao nível do piso, que lhe retira muita visibilidade, mas o rigor e a perfeição de toda a cenografia e encenação eliminam qualquer outro problema menos técnico e mais logístico. Os meus parabéns!

Grito do Dragão
Os Persona abriram definitivamente as portas para a entrada de conceitos tipicamente das Artes de Rua na Viagem Medieval. O Dragão de Terras de Santa Maria exibiu-se com toda a excelência nas noites desta edição da Viagem. Confesso, adorei o “boneco” mas a parada em si soube-me a pouco. Um grande passo, mas que certamente poderá evoluir ainda mais.

Mouras Encantadas
Apenas consegui calendarizar uma “visita” a este espectáculo. Confesso, a digestão não foi fácil. Tenho alguma dificuldade em tecer uma avaliação coerente. Pesam positivamente a utilização de um espaço, habitualmente, morto e, uma vez mais, a utilização de lendas para a criação de espectáculos alternativos. Mas, por outro lado, em muito pesa a dificuldade de compreensão da situação retratada e os elementos que já vêm sendo hábito desta companhia. E que tal mais um projecto para tirar as dúvidas?

Peleja
Surpresa, ou talvez não? Nas últimas edições a Viagem Medieval a Milícia de Santa Maria tem-nos apresentado agradáveis projectos. O Torneio do Mestre Arqueiro era já algo digno de registo em qualquer roteiro pelo recinto. Este ano subiram o desafio… e que produto final. A Peleja, junto ao Castelo, atingiu níveis de qualidade absolutamente fabulosos, num espectáculo que seria bem mais digno da noite, com efeitos especiais, do que no momento de glória do final de tarde. Oxalá continuem a produzir e a inovar com projectos deste nível qualidade.

Aldeia
Pessoalmente acredito MUITO neste espaço. Em 2011 faltou algum ritmo e dinâmica a um projecto que merecia um pouco mais de cenografia, mas nada que o tempo e algum investimento gradual não possam resolver.

Fortim Templário/Acampamento Mouro
Pela primeira vez os projectos militares causaram-me uma certa desilusão. Encontrei no fortim templário um espaço para dois espectáculos diários e pouco mais. O parque da cidade ficou praticamente morto, cercado por um fortim abandonado em grande parte do dia e por um acampamento mouro quase sempre encerrado. Na minha perspectiva estes dois espaços levam talvez a nota mais baixa desta edição da Viagem.

Projectos Âncora
Gostei, especialmente, da abordagem mais "fresca" que foi incutida às recriações âncora, nesta Viagem Medieval, e adorei a linha de continuidade entre os vários projectos. "Duro Contra Duro, Não Levanta Muro", "Lenda do Bispo Negro", "O Seu a Seu Dono" e "Antes Invejado Que Lastimado" foram uma agradável surpresa rompendo um pouco a barreira da fiel recriação a que a Viagem Medieval pretende responder num sentido alternativo. Sendo teatro amador há que dar os parabéns pela excelência, pelo rigor e pela qualidade conseguida, que sendo perfeitamente notória a diferença para um projecto profissional deixa dúvidas a muita gente quanto à real proveniência dos actores.



Muitas notas e algumas sugestões, fica o registo de mais uma edição muito concorrida da Viagem Medieval em Terra de Santa Maria, com um número de visitantes ainda por contabilizar, mas certamente ao nível (ou até mais) das últimas edições. Sem nenhum grau de dúvida, pode afirmar-se que mais de meio milhão de pessoas passou pelo Centro Histórico de Santa Maria da Feira ao longo dos 11 dias de regresso ao passado. 


Agora resta-nos marcar na agenda a XVI edição, anunciada para o período compreendido entre 2 e 12 de Agosto de 2012, numa viagem ao reinado de D. Sancho I.

Obrigado por viajar connosco! Até 2012!

2 comentários:

Anónimo disse...

Concordo com muito do que foi dito, apenas tenho a referir que agora que é adoptado o sistema de "cobrança" de entrada ao recinto, poderiam tentar retomar um pouco os velhos costumes e presentear o público que, em tempos de crise, não tem acesso a muitos dos espaços pagos, presentea-los com mais animação nas ruas.
E já agora é pena que não tenha se deslocado a todos os lugares temáticos da Viagem para ver "coisas" menores, como por exemplo o Sentir do Guerreiro que continua a fazer a delícia de pequenos e graúdos, e tão bem desenvolvida por um grupo de "actores menores"...
É de lamentar, segundo o meu ponto de vista, o quanto os espectáculos têm perdido em termos qualitativos relativamente à fidedignidade da época em detrimento da espectacularidade visual mas que em nada se aproxima da época e da temática apresentada.
Continua, no entanto, a ter nota muito positiva, apenas se requer um pouco mais de rigor.
Um bem haja à organização, que apesar de tudo continua de PARABÉNS pelo evento.

Bruno Costa disse...

Como se pode encontrar no texto, concordo com a questão da animação, que nesta edição, mesmo com o reforço do número de grupos foi mais centralizada nas zonas alimentares, perdendo-se um pouco no resto do recinto.
Quanto às restantes áreas, obviamente que passei por elas. Provavelmente, NINGUÉM terá conseguido estar na totalidade das áreas/projectos desta Viagem. Logicamente que para seleccionar alguns pontos (não poderia falar de todos num texto deste género) tive de observar muitos mais. Isto, não retira qualquer crédito aos outros projectos, que na sua generalidade estão incluídos na reportagem fotográfica que apresento de forma completa no blogue Medieval SMF. De referir que algumas coisas acabam mesmo por desaparecer por lapso, como o caso dos projectos âncora, que me esqueci de incluir e cuja nota acaba de ser acrescentada.
E, dos restantes projectos, não destacaria só o Sentir do Guerreiro, mas também o espaço Pequenos Guerreiros, O Recanto dos Infantes, a excelência da exposição do Museu Convento dos Lóios, entre outros... e a garra feirense com 35 dos 55 grupos de animação a apresentar projectos de enorme qualidade. Veja-se, por exemplo, o novo grupo de "rock" medieval AMAR EH VERBO.
Quanto ao rigor, a aposta, como se sabe é para aumentar os níveis a cada ano, em cenografia, ambientação e rigor histórico... já nos espectáculos, ninguém tente fazer uma Viagem Medieval como a conhecemos com projectos de recriação 100% fieis. Em 2 anos perderíamos 80% dos visitantes. A aposta é pública... passa pela recriação de momentos históricos, contando os pormenores de forma mais alternativa, introduzindo a componente espectáculo, efeitos especiais... dinâmicas de cena que tornem o projecto mais atractivo e DIFERENTE. O conceito da diferenciação é fundamental, num mercado onde Feiras Medievais não faltam, mas conceitos mais amplos de que apostam na diferença não são mais dos que os dedos de uma mão permitam contar. É neste último campeonato que Santa Maria da Feira joga... :)